sexta-feira, 4 de junho de 2010

Hoje os sinos dobram por Pedro

“...a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano, e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”,Jonh Donne

Hemingway foi buscar no poeta inglês Jonh Donne o título para uma das maiores obras da literatura mundial:Por quem os sinos dobram. Hoje também procuro o poeta da morte para entender a tristeza que sinto. Neste momento em que escrevo, o corpo de Pedro Yamaguchi Teixeira deve estar chegando à São Paulo. Ele morreu afogado, no Rio Negro, a 40 quilômetros do município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, onde atuava na Pastoral Indígena. Seu pai, o deputado federal Paulo Teixeira, certamente estará neste último vôo. Posso antever a mãe Alice e os irmãos de Pedro na espera.
Não os conheço intimamente, mas os conheço o suficiente para sentir a dor que a tragédia causa. Tivemos encontros improvisados pela vida, sempre marcado pela nossa “origem geográfica” – eu de São João e o Paulão, de Águas da Prata, cidades irmãs-, pela política daqui, ou de Sampa e pelos amigos comuns. No entanto, a morte de Pedro, o primogênito de seis irmãos, me pegou de um jeito que não previa. Em minha mente reaparecem cenas do Pedro que vi: vejo ele e a família, na Fazenda Laranjeiras, aqui em São João, quando vieram passar férias; depois ele com os primos na Prata, na casa do seu tio Fernando, ou na praça daquela cidade, em um determinado Carnaval; lembro também do pai dele contando que o filho mais velho estava fazendo Direito, com certo orgulho pelo menino escolher a mesma carreira que ele, a mãe e o avô. A última imagem que lembro é ele de terno, em Brasília, feliz por ter conseguido uma credencial para entrar no plenário para fotografar o pai, em sua posse como deputado federal. Lembro do seu olhar de orgulho daquele pai, mas sem nenhum sinal de afetação. Lembro do ar sério, da preocupação com as irmãs, que se evidenciou num dia remoto, acho que em 94, quando ele ligou para o pai , que estava na votação do orçamento na Assembléia Paulista, para dizer que a irmã se atrasara na volta do balé e já estava escurecendo em São Miguel Paulista, onde moravam...
Mais ainda me vem muito clara a imagem bonita dos pais e dos filhos juntos. Vê-los juntos era uma coisa! Primeiro pela quantidade: uma escadinha. Todos muito educados, simpáticos e afáveis; depois, o que chamava atenção era o carinho de uns pelos outros. O respeito, a dedicação...
São relances, que nem de longe traçam uma vida. Deviam haver desavenças quando uma das meninas pegava a calça jeans da outra e esquecia de lavar, ou quando os meninos não queriam acompanhar os pais... Mas nada disso transparecia, naquela placidez japonesa que a mãe ensinou. Há anos não os vejo, mas a perda me atingiu como se fôramos íntimos. Acho que, justamente, por quebrar a aura de perfeição que os embalava, mas também pela gratuidade da morte, que por mais que tente entender, nunca a compreendo de verdade.
Ao final do discurso que fez antes de partir em missão, Pedro disse em fevereiro:
“...Quero viver, escrever uma gostosa poesia de minha vida. Poder respirar um ar puro, contemplar a mata e os animais, estar em contato com culturas diferentes, jogar mais futebol, estar no paraíso natural. Como diz a poesia do sambista Candeia, cantada na voz de Cartola: “deixe-me ir, preciso andar, vou por ai a procurar, sorrir pra não chorar. Quero assistir ao sol nascer, ver as águas do rio correr, ouvir os pássaros cantar, eu quero nascer, quero viver”.
Queria também outras coisas. No mesmo discurso gritava e exigia justiça social, como só a inteireza da juventude é capaz.
Entrou em contato com o que chamou de “lado B” do Brasil, ao conhecer o mundo da Pastoral Carcerária em São Paulo. Ao ver o lado B, conseguiu enxergar as mazelas de um povo, para os quais a sociedade já não tem mais olhos de ver. Lá estão escancaradas as dificuldades de um universo dominado pela injustiça, pela discriminação racial, pela violação de direitos essenciais. Atuou três anos neste universo, mas não preferiu como muitos “anestesiar-se” e fez a opção por mudar em si, aquilo que via como descalabro no mundo: foi para a Amazônia, para defender direitos de índios, da população ribeirinha e a natureza, mãe de todas as outras coisas. Despojou-se de bens materiais para viver a vida como os mais excluídos.
Morreu afogado, três meses depois, enquanto nadava no Rio Negro.
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Em ocasiões muito especiais as portas dos céus se abrem e caem, cá na terra, seres que modificam tudo a seu redor. A história está cheia de exemplos assim. Na Grécia Antiga, as portas do Olimpo se abriram no Século de Pérícles, quando Atenas se tornou o centro do mundo. Lá estavam Sócrates e Platão, Aspásia de Mileto e o próprio Péricles, Fídias para construir a Acrópole, Anaxágoras, Heródoto, Sófocles e um pouquinho antes, mas também contemporâneo de todos Artistóteles. Depois as comportas novamente se abriram na Itália para brindar o mundo com as obras de Michelangelo,Leonardo da Vinci , Rafael, Boticelli, Tintoretto e mais uma dezena de pintores. O mundo já havia mudado um século antes, com a propagação da cultura através da prensa do alemão Guttemberg que permitiu, cem anos depois, que a realidade dura e fria do poder fosse revelada por Nicolau Maquiavel em O Príncipe e a filosofia hierática e herege de Giordano Bruno ganhasse o mundo. Depois, no século da luzes, foi a vez de Decartes, Voltaire e Rousseau darem cartas vigentes até hoje, no racionalismo dialético do primeiro, na sofisticação erudita do segundo e no puritanismo do “bom selvagem”, do terceiro. Há exemplos mais antigos que unem a construção das pirâmides do Egito em 2700 – 2200 AC, ou o fortalecimento da cultura Maia na América do Sul, em 100 AC e o nascimento de Cristo, mudando uma era...
Nos tempos atuais, o céu parece mais generoso e junta, vez por outra, pessoas que mudam a vida a seu modo. Que outra explicação haveria para o fato de juntar a genialidade de João Gilberto, com a dedicação operária e também genial de Tom Jobim e ainda um poetinha Vinícius na mesma cidade, na mesma época, para uns inventar a Bossa Nova e outros consagrá-la? Na década de 50, as portas do céu estavam mesmo escancaradas, pois desta época ainda são Chico Buarque, Jorge Bem Jor, Roberto Carlos, Elis os fabulosos baianos Caetano, Gil, Bethania, Gal, Caymi e muitos outros.

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Em nossa vida cotidiana ás vezes vislumbramos aberturas celestias, quando somos brindados participando de momentos assim, ou apenas testemunhando a sua existência.
Pedro, me parece, era um destes anjos que nos visitam para fazer a vida ter mais sentido. Quem ele não conseguiu atingir com a sua vida, acabou fazendo com a sua morte. Me lembra uma música da época da ditadura que afirmava que as idéias não morrem ao dizer “Você me prende vivo e eu escapo morto”..
Pedro escapou morto. Tenho certeza que encontrou o que foi buscar no Amazonas e encerrou a missão. Vá em paz Pedro e vele para que sua família não perca o elo de amor que sempre foi a sua maior marca.