domingo, 20 de fevereiro de 2011

Uma São Paulo que poucos veem


Na esquina da Rua do Ouvidor, com a São Francisco, no coração da cidade, aporta toda manhã um dos muitos rostos anônimos que rivalizam com a paisagem e se tornam marcos. O nome não poderia ser mais comum: José da Silva. Seu José construiu com caixas de verduras um tablado onde instala a sua mercadoria.
São cebolas, quase sempre. Às vezes batatas e alhos. Agora, como é época, a banquinha está repleta de favas. O que chama atenção no seu produto é a qualidade, a aparência como ele os vende e o local. Embaladas, na esquina da Ouvidor, a uma quadra do Largo São Francisco, estão batatas selecionadas por tamanho, cebolas sem quaisquer marcas, alhos previamente
escolhidos com matizes em roxo e agora favas que trincam de tão frescas.
O preço é alto, comparado com os similares o que me faz pensar quem é que compra.
A gente apressada que caminha para o Terminal Bandeira ou para o metrô Anhangabaú, não vai carregar sacolas de cebola e alho a um preço mais alto do que o encontrado na periferia.
Mas por ali também circulam engravatados, moças e senhoras de salto alto, que comem ou tomam café no bar da ladeira, ou que param seus carros nos estacionamentos que abundam no local, para trabalhar no arquivo da Polícia Federal, ou do Tribunal de Justiça, no prédio do TRE, na Prefeitura ou nos escritórios de advocacia que alí são muitos. São eles, desconfio, os que compram a mercadoria de seu José.
Ele se diz pernambucano, mas os olhos azuis celestes, escancaram a sua ascendência italiana. A idade é indefinida, mas as bolsas embaixo dos olhos e o olhar perdido, revela exageros etílicos. O lugar exato de pernambuco ele não lembra. Diz que vem de tantos lugares que não se importa mais. A vida o foi tocando e o encostou naquela esquina. Ele mora em um dos muitos prédios invadidos que tem por ali. Vai de um para outro e mora em “qualquer cantinho”.
A mercadoria e a tralha ele guarda nas garagens dos prédios vizinhos. Para pegar os produtos frescos, amanhece na feira atrás do Mercado Municipal. Às 7 já está com a mercadoria exposta.
A polícia, quando resolve “limpar” as calçadas dos ambulantes, nem se aproxima do seu José e da Rua do Ouvidor. Ele é patrimônio da rua e faz banca alí há mais de 5 anos.
Agora, com a novidade das favas, seu José encontrou amigos para ajudar a debulhá-las. São dois ou três. Aparentam mais de 60 anos, cabelos brancos e sentados, alí, em caixotes na esquina, imunes ao barulho e ao ar poluídos pelos escapamentos dos ônibus forçam na subida, estão debulhando favas e as separam em saquinhos que são regiamente pesados por seu José, numa balança pequenina.
Os três contam histórias, fumam seus cigarros, tecem conversas, riem de piadas comuns, na medida em que os grãos são separados.
Vistos assim, de longe, parecem felizes e criam uma ilha de tranqüilidade naquela esquina. Eles podiam estar no terreiro de uma roça. O som que os embalaria seria o cacarejar de galinhas e o canto dos pássaros, mas é o som dos veículos, o ar quase irrespirável, o que os alimentam. Parecem à vontade e transformam a esquina num lugar provinciano.
O que é mesmo ser feliz? Fico sempre me perguntando.

A pequenina Rua do Ouvidor em São Paulo, não tem o glamour da xará carioca. Alí nunca foi ponto de encontro de ninguém, nem mesmo recebeu um traçado especial na complicada geografia paulistana. Nem sequer foi sempre chamada assim. A rua do Ouvidor, nos primórdios da capital, era onde é hoje a rua José Bonifácio, em frente à São Francisco. Lá era o endereço do Cel. João de Castro Canto e Mello, que ali morava com sua família. Foi em sua casa assobradada que o Cel. recebeu a sociedade paulistana para o casamento da filha caçula, Domitila de Castro. A moça era apenas Titília, uma beldade resplandescente aos 16 anos, que arrancava suspiros aos homens da época. Somente mais tarde é que Titília viraria personagem da história do Brasil, ao tornar-se a Marquesa de Santos e a encher o império com o ruído do seu nome e o escândalo do seu amor. Enquanto Marquesa ela comprou um solar na antiga rua do Carmo, também nas imediações, onde hoje é o Museu da Cidade.
A rua do Ouvidor de então, era a rua do Bixiga, porque ligava a cidade à chácara do Bixiga. A Câmara chegou a dar-lhe o nome de ladeira de Santo Amaro, uma vez que atravessando a praça da Bandeira, se chega, do outro lado à rua Santo Amaro. Mas o povo a chamava de ladeira do ouvidor, porque acabava na rua do Ouvidor.
O povo, como se sabe, tem sempre razão. E a rua roubou o nome até da original.

Seu José, nem desconfia disso. Aliás, quase dois séculos depois, quase ninguém mais sabe o endereço de solteira da Marquesa, ou o que é ou era um ouvidor.
Ele é mais um personagem desta paulicéia, que Oswald de Andrade, já considerava desvairada na década de 20, mas não o único. Ainda há muitos outros a serem descobertos.

Achei no Wikipedia a foto da rua, com a banca do seu José! Perfeito.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Desenrolando fios

O dia é chuvoso, quente. Dias de fim de verão que já carregam no ar um cheiro de colheita e de terra fértil. Sento-me na mesa da casa em que cresci, para desembaraçar fios. Um emaranhado de linhas de bordar, de lãs que aqueceram diversos invernos e que jazem numa cesta, esquecidas, emaranhadas, sempre deixadas para depois, na mudança de diversas casas. A cesta é um desafio especial. A carreguei para muitos lugares, para muitas cidades, mas sempre intocada. Foram nela se amontoando outros novelos, muitas meadas de linha, carretéis intocados...
Muitas vezes a quiz jogar fora mas, nunca tive coragem. A cesta guarda um pouco do que eu fui, do que eu sou, do que eu deveria ter sido e talvez, juntando as partes poderei tecer um novo futuro.
Herdei a necessidade de fazer uma cesta com linhas, paninhos, agulhas e lãs da minha mãe que passou a vida com uma nas mãos. A minha primeira experiência com as linhas foi ainda menina.
Minha mãe tentou me ensinar a bordar mas nunca conseguiu. Quem deu conta do recado foram as freiras do Colégio Santo André. Elas davam aulas de bordado, para meninas, com outras voluntárias. As aulas eram às quintas-feiras, na varanda ao lado do jardim do convento. Era um lugar lindo, com um barulho de água que vinha da gruta e flores coloridas que atraíam beijas flores e borboletas de diversas cores. Lá eu tinha paciência de aprender só pelo prazer de estar alí.
O que me atraia era o silêncio, as vozes sempre baixas. Ficávamos lá, algumas meninas e muitas donas de casa, lutando com paninhos-de-amostra-de-ponto e ouvindo conversas de mulher, que eram sussurradas, para não quebrar o encanto do local.
Minha mãe era especialista em ponto cruz. Mas, versátil, também enveredou pelas artes plásticas, pela pintura em porcelana e de peças em gesso, pelas flores artificiais, para depois se concentrar, de novo, no ponto cruz.
Minha avó fazia crochê e macramê. Lembro de suas mãos fininhas, os dedos frágeis, se movendo em alta velocidade para fazer toalhinhas, ou “amarrando” pano de prato. Mas na medida em que os anos chegaram e que o azul dos olhos foi tomado por uma bruma branca, o crochê, as linhas e os alvos panos de prato alvejados em caldeirão no fogao de lenha e branqueados com um quadradinho azul de alvejante, foram deixado de lado. Vó Isabel era seu nome e a sua lembrança e invocação sempre presente é que me deram
Enquanto estou na mesa da cozinha, com a cesta nas mõs, as linhas embaralhadas trazem histórias que formam novos novelos na minha mente.
Depois da infância, só me aproximei daquela cesta em ocasiões muito especiais e em todas as notícias de gravidêz. Era uma atração especial: mal lia o resultado do exame e já corria para a cesta. Parecia que a ação que se processava por dentro tinha que encontrar uma parceria do lado de fora. As linhas que bordavam, os pontos do tricô, as agulhas, fitas, passa-marias iam construindo de maneira palpável, o pequeno ser que ser formava nas entranhas. E foram quatro vezes. Em três, o grande prazer de gerar ganhou pernas, braços e risos. Muitos risos. Estar com os meninos é sempre festa. Principalmente quando todos se juntam. Até mesmo o que foi morar no céu, antes de nascer, parece estar junto, quando nos sentamos na sala, cada um de um lado, outro no colo (agora mais difícil a tarefa), lembrando histórias, falando da vida, assistindo filmes ou apenas rindo uns dos outros, ou todos de um.
Tiro uma meada verde bandeira que foi usada para bordar um conjuntinho de pagão do meu primogênito, mas que os três usaram porque era muito linda. Roupinha de pagão, era como chamávamos uma roupinha “de baixo”, colocada antes do macacão. A mesma linha foi usada numa “vira manta”, que era quase um lenço que colocávamos em volta de um cobertorzinho, onde o bebê ficava enroladinho, como um canudo gigante, somente com a cabeça para fora, apoiada numa dobra maior do cobertor.
Outro dia vi na TV que um médico descobriu uma fórmula mágica de fazer os bebês pararem de chorar: enrolar o dito cujo, para ele sentir a presença de limites, numa forma de rememorar o espaço pequeno que tinha no útero. Nada mais, que o velho e bom “cueiro”, que nem era mais moda na década de 80, mas que para o meu primeiro filho, primeiro neto e primeiro sobrinho só tinha aquela forma de vir e conquistar o seu espaço no mundo: um jeito antigo, típico de vó e do interior.
O cueiro – bemdito o seja – perdeu a função pública na primeira visita ao pediatra, com ele enrolado no dizer de minha mãe, como um “fagotão”*: o pediatra achou absurdo. Disse que inibia os movimentos do bebê e que era uma coisa ultrapassada. Vinte anos depois, como eu já sabia e usei em todos os três, o cueiro virou fórmula mágica para fazer bebê parar de chorar, como acontece com quase tudo que era bom no passado, virou proibido e depois foi redescoberto.
Outra meada e outra lembrança. Desta vez o enxoval do meu segundo filho. Para ele fiz conjuntinhos de lã e lembranças do nascimento que eram mini sapatinhos, onde se colocava o nome do bebê, com um cartãozinho e a data do nascimento. Fiz tantos sapatinhos, que sobraram para lembranças do nascimento do meu sobrinho, que foi o próximo bebê da família e até pouco tempo atrás, de vez em quando se via em alguma gaveta esquecida, uma destas miniaturas...
Na gravidez que não chegou a seu termo, fiz um monte de coisas cor-de-rosa. Infeliz presságio. Era um menino como os demais e o enxoval, de qualquer forma, nunca seria usado mesmo.
Para o último o que me motivou na direção da cesta, foi uma “febre” de bordados em lençóis e toalhinhas. Foram tantos lençóis com ovelhas e paninhos de boca, que até hoje, 14 anos depois, as toalhinhas ainda estão nos armários, com nomes e figuras bordadas em ponto cruz.
Só retomei a cesta de costura muito depois, já encerradas as possibilidades de gravidez, em busca de paz. Fugia para a cesta para bordar tapetes e fazer cachecol, que não requerem talento nenhum, nem precisam de esforço de concentração. Funcionavam como terapia para esvaziar a mente muito cheia. Mecanismo parecido com o da gravidez, porém, algo mais leve porque não havia compromisso em terminar. Fazer por fazer. Sem importar com o uso, com o prazo de término. A cesta está cheia destas experiências.
Continuo a remexer na cesta e reconheço o esboço para bordar uma toalha em ponto cruz minimamente contados, que eu guardei por conhecer o original.
Minha mãe bordou a toalha assim para seu enxoval quando tinha 16 anos. Era um encantamento. A toalha tinha duas chinesas em cada canto. Elas, paramentadas com quimonos, chapéus e sombrinhas mantinham as cabeças baixas, onde só se via, os riscos dos olhos puxados e o sorriso. Uma cochichava no ouvido da outra, e aos sussurros, pareciam contar histórias divertidas, como se comentassem o que viam. Sempre achei que elas riam da gente. A toalha só era usada em grandes ocasiões. Fazia parte de um especial aparelho de chá, com bolinhas vermelhas sobre a cerâmica branca, modernidades da década de 60.
Geralmente, a toalha era colocada quando visitas apareciam para o café da tarde. Havia sempre um bolo, ou bolachinhas, que acompanhavam o dia da visita. A qualidade dependia da importância do visitante.
O desenho me faz lembrar de um outro tempo, mas aí já é uma outra história...

(Continua)
· Fagotão, seria o equivalente a um fagotto grande. Fagotto é um instrumento de sopro muito popular na Itália, utilizado em bailes. A semelhança está na forma com que se carrega o instrumento e o bebê enrolado.