quarta-feira, 2 de março de 2011

Entrevista O MUNICIPIO - Final - Os novos desafios

6-- em sua percepção o que faz o jornal O MUNICIPIO manter-se vivo, uma tradição?
A perserverança de quem o faz. A tradição de manter-se vivo, cem anos depois, é pura teimosia. O Municipio pôde ser inovador, porque contou com um Mecenas para pagar a conta! Simples assim. No caso foi o próprio dono. Entre 1998 e 2001 o jornal era maior do que a cidade podia comportar. Na São João de 13 anos atrás, não tinha indústrias como hoje e embora o comércio fosse forte, não tinha visão de marketing. A instalação dos cursos de propaganda e jornalismo ajudou a mudar isso, mas foi só depois que a primeira turma se formou em 2003. Por outro lado, o país e o mundo também eram outros. Na época das grandes inovações não tinha agências na cidade e computador ainda era artigo de luxo. Soma-se a isso o talento para gerar polêmica e os inimigos – alguns poderosos - que o jornal acumulava e o resultado era que a conta jamais fechava. Há 13 anos, o custo da internet, por exemplo, era absurdo! A conta de telefone era um despropósito, com internet discada e depois com banda larga. Chegava a custar, em 1999, cerca de R$ 5 mil ao mês. Era o equivalente a toda a receita de publicidade de uma edição de sábado, em dias de vacas gordas. Não tinha inflação, mas estávamos trabalhando com tecnologia de ponta e tudo era caro. Se saísse um processador, um scanner, um drive novo, que facilitasse o trabalho, o Jornal comprava. Tínhamos provedor dedicado; uma empresa somente para colocar as matérias e fotos no site... , comprávamos fotos de agências, algumas até internacionais e assinávamos resenhas de jornais. A “venda casada” de livros e filmes com o jornal era totalmente subsidiada. A conta de gráfica era absurda com cadernos especiais, edições comemorativas (tudo era motivo para imprimir mais páginas) .... Ainda tinha fotolito e para imprimir em cores, eu lembro que foi em 1996 que fizemos a primeira edição em cores, o preço da impressão triplicava. Lembro que contratávamos pesquisas – qualitativa e quantitativa– para saber o que o leitor pensava do jornal, o que ia bem, o que ele queria ver. Também contratávamos pesquisa eleitoral, para saber a posição do eleitor. Os consultores cobravam por hora... Enfim, vendíamos muita publicidade, aparentemente entrava dinheiro, mas saía muito mais. Tinha que esperar vender boi no Mato Grosso para fechar as contas!
Este foi um período que passou. Venceu-se o desafio de fazer o jornal do zero, de reconstruir uma marca e de reposicioná-la no mercado. Não é um desafio de 100 anos que o jornal enfrenta. É de 20 e poucos anos. Agora, estamos diante de novas mudanças e de novos desafios que se impõem a este jovem senhor: como será a integração com a internet e outras mídias? E com os tablets, como o IPAD? O jornal terá que ser um portal, com interatividade, vídeos e audios? Será o jornal impresso algo reservado no futuro como um luxo? Como unir estas tecnologias ao mercado e tornar o projeto sustentável? Quem hoje lê O MUNICIPIO? Onde há acertos, onde há erros. São novas questões para um novo mundo. E o jornal precisa começar a pensar nelas se quiser sobreviver, não por mais 100 anos, mas por mais 20 anos.

Entrevista O MUNICIPIO - Parte V - O que se leva da vida é a vida que se leva

5- hoje, em seu novo trabalho (qual é?), V. consegue identificar ações que foram apreendidas/assimiladas no jornal O MUNICIPIO? Quais?
Acho que tanto como Assessora de Imprensa na Secretaria de Participação e Parceria, na Prefeitura de São Paulo, (cargo que exerço desde de 2007), quanto como Secretária de Turismo da Prata, para onde fui em 2005, levei o que aprendi no jornal. A principal marca talvez seja a necessidade de exercer múltiplos papéis, este jeito de me meter em tudo e de derepente estar fazendo algo muito diverso daquilo que era a função do cargo, como tem sido agora com as discussões sobre os rumos do Terceiro Setor, com os eventos e com o livro que publiquei. Outro ponto é ter compromisso com terminar e prazo para fazer, o que é quase uma heresia no serviço público. Ou seja, não dá para procrastinar que é um talento nato do Poder Público. Aí temos problemas e a jornalista e a assessora às vezes se estranham.
Em São Paulo consegui um bom relacionamento com colegas da imprensa, por respeitar o trabalho deles, porque sei como é estar do outro lado, querendo apurar alguma coisa e ter um assessor enrolando... Acho que sou mais jornalista que assessora, nestes casos. Mas me conformo sabendo que não sou a única...

6- você considera importante a sua passagem pelo jornal como base para o seu trabalho atual?
Agora o que talvez levei de melhor do jornal foi o entendimento de que o mundo é um lugar muito diverso. No jornal você acaba conhecendo muita gente, muitas visões diferentes de vida e descobre que cada problema tem muitos ângulos e soluções. Isso é muito rico e a mim, me fez mais democrática, mais aberta a outras opiniões, mais tolerante com as diferenças, mais conciliadora até. Enquanto jornalista, a palavra chave do trabalho é contexto. Quando você interioriza isso, começa a ver a vida numa linha do tempo e num contexto específico. Passa a ser uma visão muito mais sociológica de causa e efeito e é inevitável que se torne fã de gente, pessoas comuns, que são heróis do cotidiano. Sabe aquela máxima de que ninguém é tão rico que não tenha nada para aprender, ou tão pobre que não tenha nada para ensinar? Esta é a máxima da reportagem que é o “gran finale” do jornalismo. Quando se entende isso, a vida fica mais bonita, mais rica e mais participativa. Você se torna uma pessoa melhor e, com isso, um profissional melhor, onde quer que você vá.

Entrevista O MUNICIPIO - Parte IV - O Caso Priscila e a Lei de Imprensa

4- que fato importante (registrado em sua matéria) também ficou marcado em sua memória jornalística, enquanto funcionário do jornal?
Em 14 anos passa uma vida. Houve matérias que foram muito custosas emocionalmente. Mas nenhuma como cobrir o assassinato da menina Priscila, em 2000 e todas as implicações de depois. (Priscila foi assinada pelos pais, com 1 ano e 9 meses, depois de ser barbaramente torturada durante meses. A criança já havia sido afastada dos pais quando tinha dois meses e encaminhada para uma família de apoio pela Vara da Infância e da Juventude, em função de maus tratos. Reinserida na família de origem, quando tinha 1 ano e dois meses, a criança era obrigada a passar por uma pediatra, pela Assistente Social e Psicóloga uma vez ao mês. A médica às vezes pedia para vê-la a cada 15 dias, em função dos “acidentes” que sofria e que lhe feriam a cabeça, braços e pernas e que requeriam exames mais acurados, como constantes raio X. Tudo isso era relatado minuciosamente em relatórios, que constam do processo e que apontavam ainda que ela tinha uma “dermatite de fralda” que não sarava e que era tão feia, formando bolhas, que no Boletim de Ocorrência registrado pelo Pronto Socorro, para onde a menina foi levada depois de morta, o corpo clínico achou que eram marcas de queimadura de cigarro. Os mesmos relatórios dão conta que a menina ainda emagrecia todo mês e que nunca andou, embora não tivesse problemas motores e já ficasse de pé, quando foi para a casa dos pais. Apesar do aparato criado para protegê-la e registrado no processo, durante os sete meses que durou o suplício da menina, nenhuma das pessoas envolvidas se posicionaram para dizer que algo de muito sério acontecia ali. Pelo contrário, alguns relatórios justificavam as lesões encontradas pela médica como “intercorrências normais para a idade”).
Eu nunca quiz fazer matérias de polícia. Na época, essa era função da Ana Paula Fortes. Mas achei, até porque ela era muito menina, que cobrir aquilo exigia um pouco mais de preparo. Eu tenho todos os passos da matéria muito nítidas na memória. Lembro que primeiro falei com a família de apoio que queria adotar a menina; depois com a promotora e fui eu quem dei a notícia da morte, a ela. Ela me franqueou acesso ao do processo e quanto mais eu lia, mais me indignava, porque a história de abuso estava toda caracterizada nos documentos. Naquele momento a mãe já tinha confessado que tinha matado a menina e estava presa. Para mim o espanto era tal, que eu copiava os documentos e fazia comentários. Foi juntando gente que estava no fórum, para saber o que eu estava vendo. A promotora me chamou e perguntou o porquê daquilo tudo. Contei o que tinha visto e o que estava no processo. Ela me disse: Ótimo. Vamos usar o processo para condenar a mãe. Eu só pude responder: Mas a função do processo era salvar a filha. Não era a de condenar ninguém! E sai. Começava ali um problema que só acabaria em 2006, dois anos depois de eu já ter deixado o jornal. E o processo citado serviu mesmo de base para que a promotoria conseguisse a premeditação do crime e os 18 anos de condenação do casal, que até onde eu sei, ainda cumprem pena.
Saindo do fórum fui para a Fazenda São Paulo, falar com os vizinhos ( tinha lá uma vilazinha para os trabalhadores) Eles me contaram que todo mundo sabia que a Teresa ( este é o nome da mãe) batia na filha. Que eles sabiam que os dois não gostavam da menina – tinha uma fofoca de traição - e que o casal não mostrava a menina para ninguém. Apenas a filha mais velha é que eles viam. Foi na fazenda, naquele dia, que ouvi pela primeira vez a história de que uma irmã do Vitor ( pai da menina) tinha feito o mesmo e “não tinha acontecido nada”.
Fui para o jornal escrever. Foi o mais difícil. Quando acabou, tive uma crise de choro que foi incontrolável. Era um misto de tristeza, de raiva, de impotência, porque estava tudo alí. Num dia, foi fácil levantar o que ela viveu em 7 meses. É claro que sempre é mais fácil entender uma história quando você sabe o desfecho, do que quando está vivendo no calor dos acontecimentos, mas não podia entender, nem aceitar um sistema feito para proteger e que não cumpre o seu papel.
A minha indignação encontrou eco nos leitores. Foram cartas, artigos, telefonemas, a cidade ficou chocada Primeiro pela violência, básica, gratuita, covarde. Depois pela omissão das autoridades envolvidas numa morte que parecia anunciada... E nós fomos publicando tudo o que chegava. Para encurtar: os leitores foram intimidados por policiais por terem se manifestado e uma leitora que escreveu um artigo falando sobre Justiça Divina, foi processada, mas ela foi inocentada no final. Uma denúncia de crime contra a honra foi feita contra mim (estava em vigor, ainda , a Lei de Imprensa da Ditadura), mas depois de correr o Estado até achar um promotor que a propusesse, não foi acatada pela justiça. O jornal, com base na mesma lei, também foi processado na esfera civil, para que pagasse uma indenização por danos morais, à Assistente Social que acompanhava o caso. Mas, uma vez que não houve o crime, não poderia haver ressarcimento e em 2006, finalmente o processo chegou ao fim.
Quando soube que os leitores estavam sendo ameaçados, fiz um relatório de tudo o que tinha acontecido, o que ainda estava acontecendo, peguei um taxi aqui em São João e fui descer na praça da Sé. Nem sabia direito onde estava indo, mas tive sorte e achei o presidente do Tribunal e o Corregedor no Elevador que estavam saindo. Expliquei o caso e entreguei o documento na mão deles. Dois dias depois, desembargadores do Tribunal de Justiça estavam em São João para pegar cópia do processo. Um mês depois instalou-se uma correição no Fórum. Teve advogado que fez churrasco neste dia! Os desembargadores voltaram mais duas vezes e ouviram todos os leitores que foram “visitados” por policiais. O processo foi parar num setor de feitos originários e depois arquivado e muitas idas e vindas foi arquivado. Sobre a lei de imprensa da Ditadura e os processos do jornal vale um capítulo, porque aconteceu ainda há pouco e foi provocado por uma lei dos militares que fez efeito e vítimas, até 2008.

Entrevista O MUNICIPIO - Parte III- A Rainha do Apocalipse

3- Houve situações engraçadas que ficaram marcadas em sua memória?
Muitas. Tinham as histórias de fantasmas que rondavam o jornal e que apareciam à noite. Durante o dia o jornal era ponto de encontro: barulhento, cheio de gente, de políticos, de reuniões e conspirações. Tinha muita energia. Quando ficava tudo quieto, apareciam uns barulhos estranhos. Sem contar uma fantasma loira que era minha amiga e que de vez em quando sentava na redação.Tinha gente que não ficava no jornal depois de escurecer de jeito nenhum! Mas as melhores histórias eram as protagonizadas por nós mesmos e por um festival de bobagens que se falava e se escrevia, algumas vezes. De 1998 até 2004, quase toda a redação era formada por mulheres. Os homens eram estranhos no ninho e escolhidos a dedo. Mandá-los fazer matérias de moda, por exemplo, era diversão garantida! As reuniões de pauta podiam durar uma tarde inteira! Ríamos muito e na maioria das vezes de nós mesmos. A reunião de pauta, quando o dr. Joaquim não estava, começava com um assunto, discutia a relação, ralhava com filhos, trocava receita, falava de música, literatura, moda, do fim de semana, dos namoros e no fim das contas, daquela salada, saía uma pauta bastante decente, o que era um assombro! Nao tinha uma urgência para corrrer para a frente do computador, entrar no email, postar no Facebook. Com isso sobrava tempo para esmiuçar o assunto, contar histórias e dar contexto para quem estava chegando que é a melhor maneira de ensinar alguém. Tinham histórias que viravam piada, só depois do acontecido. Uma delas foi a da “Rainha do Apocalipse”. Em 1996 ou 1997 teve um “surto” de aparições de Ets, “Chupa-Cabras”, luzes misteriosas e afins. Foi um pouco depois do ET de Varginha. No jornal ligavam pessoas para dar conta destes casos e eu e uma amiga, a Cristina Lerosa, íamos em tudo quanto é lugar que alguém falava que tinha visto alguma dessas coisas estranhas. Na Prata era um festival disso, principalmente no São Roque. O “consultor” era o Varanda que tinha uma OnG de ufologia, ou algo assim, e dava ares científicos para aqueles momentos que mesclavam misticismo, medo e alguma picaretagem. Bom, a nossa “carreira” de caçar ET terminou quando uma mulher me ligou e disse que todo mundo via essas coisas, mas que era só com ela que eles falavam.
Eu liguei para a Cris e uma hora depois, lá estávamos nós, numa casinha na Vila Conceição, para ver a mulher que falava com os ETs. Lá, uma senhora que era só pele e osso, vestida num vestido que parecia um saco, nos recebeu. Ela pediu para entrarmos, trancou a porta e enfiou a chave dentro da roupa.
Nos já ficamos aprensivas, mas estávamos tão impressionadas com a aparência da mulher que não falamos nada. A sala onde entramos era branca, sem nada nas paredes e um chão de piso frio. Quase não tinha móveis, só um sofá de alvenaria, que contornava a sala, sem almofadas, uma mesa com duas cadeiras e uma estante. Explicou a mulher que o Ele ( ela se referia assim ao ser de outro planeta) não deixava ela ter nada e que também não deixava ela comer, porque não precisava, uma vez que o fim estava próximo. Ela despencou a falar um monte de bobagens e eu resolvi gravar para tentar interromper o monólogo e fazer perguntas. Quando peguei o gravador na bolsa e coloquei perto dela, ela quase me agrediu, começou a gritar e disse que não podia, que Ele ia chegar e matava todo mundo. Dizia que ela já estava sentido a sua chegada e Ele estava muito bravo. No seu surto psicótico aquilo foi num crescendo e só piorava. Lembro ela em pé, falando, gesticulando que tinha chegado o fim. Não conseguia entender como algúem tão magro tinha tanta vitalidade...Parecia que era mesmo o nosso fim. Ela falava que vivíamos o apocalipse e quando tudo terminasse ela seria coroada a Rainha e reinaria ao lado D'Ele.
A gente quase que nem respirava e só pensava como é que ia sair dali, enquanto ela insinuava que, como Rainha, ia gerar o filho prometido, para formar uma nova raça. Bom, no auge do delírio e do nosso medo, ouvimos umas pancadas altas na porta do fundo. Ela levantou para abrir a porta e aí parecia cena de filme de terror. Ela tirou de dentro do vestido uma chave grande e abriu a porta que fez um rangido alto e fino. Pela porta entrou primeiro um cachorro todo estranho e uma outra velha, ainda mais magra que a outra, mas com os ossos das pernas e dos braços todos tortos, como se tivessem quebrado e colado errado! Foi uma visão assustadora. Eu e a Cris ficamos imóveis vendo a velha se arrastar na nossa frente e seguir em direção ao quarto, enquanto a outra a xingava porque estava interrompendo e que o ET já ia chegar. Quando conseguimos nos recompor olhamos uma para a outra, e para a porta que ainda estava aberta e num pulo saímos, quase correndo. Nem sei o que falamos para a mulher. Foi a última vez que fomos caçar ETs. Apelidamos o caso de “Rainha do Apocalipse” e ele já nos rendeu boas risadas, em situaçoes diversas. Naquele dia, quando voltei ao jornal pedi para ligarem nos vizinhos das senhoras e apuraram que eram mãe e filha e totalmente loucas. Chamamos a Prefeitura e soube que foram internadas, com desnutrição severa. Depois nunca mais soube delas.
A participação da Cris nesta história é emblemática. O jornal não era feito só por quem trabalhava nele, mas tínhamos um monte de amigos que ajudavam, iam junto, investigavam com a gente, tiravam fotos – às vezes com as suas próprias máquinas - e até faziam as vezes de guarda-costas. Um destes, com bastante frequencia, era o Marquinho do Sindicato, que ajudava nas matérias de meio ambiente, sobretudo quando eram denúncias. Geralmente eram pautas da Ana Paula. Lembro dela, já gravidona, indo ver uma denúncia de esgoto clandestino e o Marquinho junto, de anjo da guarda. Não eram coisas planejadas! Apenas aconteciam assim. Era o jeito de fazer e no fim todo mundo era um pouco “dono”.
E não tinha bola dividida em que não entrássemos. Qualquer denúncia, a gente investigava. Quando lançamos um selo: “ O Municipio, a Arma do Povo”, não dávamos conta das reclamações e das denúncias. Tinha fila.

Entrevista O MUNICIPIO - Parte II - O mouse do lado esquerdo

2- qual foi a 'melhor parte' de trabalhar no jornal? (pautas, colegas, ritmo de trabalho etc)
Para mim cada fase foi importante. Do ponto de vista jornalístico, as grandes matérias e as campanhas foram grandes momentos. Elevar o jornal até ele ser reconhecido como parcerio da comunidade foi uma conquista e tanto. Estive no jornal em um período muito rico, muito fértil da sua história e da vida de todos nós que pudemos compartilhar aquele momento. Havia muita sinergia entre os que fizeram o jornal vingar. São muitas histórias e capítulos que nem sempre fecharam. Algumas questões continuam abertas, mas não como feridas expostas, mas sim como possibilidades que não chegaram ao seu termo. Tudo foi muito desafiante, porque era tudo muito novo.
Por exemplo, a história do computador. O computador desembarcou na redação, no começo de 1992, depois de visitarmos alguns jornais, mas sem nenhum referencial. Ninguém tinha feito curso, nem havia muitos computadores na cidade. O mais perto que eu tinha chegado de um era um XT que meu ex-marido usava unicamente para jogar xadrez. Visitamos algumas redações e jornais para saber qual máquina comprar, mas nunca perguntamos que programas instalar ou como funcionava os sistemas de arquivos e a rede. Então, arrumamos um especialista (acho que a empresa era a Chipset) que fez um projeto, instalou as máquinas e montou a rede. Mas para nós era tudo “grego”. Na hora de encomendar as mesas, eles pediram um modelo que tinha um anexo, para colocar o mouse. Acontece que o Teodoro, que era o responsável da Chipset para fazer o projeto era canhoto e encomendou todas as mesas com o anexo no lado esquerdo. Acho que ele nunca nem percebeu isso e instalou o mouse do lado esquerdo. Ele é quem ia lá dar suporte para os computadores que quebravámos dia sim e outro também. Nós o imitáva-mos. Ele usava do lado esquerdo. Nós também. Como para nós era mais difícil então aprendemos todas as teclas de atalho do word e do Page e só usávamos o mouse para o que não podia ser feito com o teclado. Acho que até perto do século XXI, todo mundo continuava usando o mouse com a esquerda, na redação!!! As mesas já haviam sido substituídas, mas quem entrava, se estranhasse, penso que achava que era assim que se fazia em jornal!!.
Até que entrou alguém, acho que foi o Rodrigo Borgo, que teve a brilhante ideia de mudar o mouse para o outro lado.... Eu lembro que para mim parecia uma heresia! Até pouco tempo atrás eu só usava o mouse com a mão esquerda apesar de ser destra! Acho que esta história explica um pouco o que foi fazer o jornal naquela época. Tudo foi tentativa, acerto e erro. As primeiras edições com editoração eletrônica ficaram horríveis!! Só nos arriscávamos em algumas páginas, porque não sabíamos transpor para a tela, o que fazíamos com cola, estilete e uma máquina que fazia uma barulheira infernal: a composer. E foi justamente quando quebrou a composer que tivemos que tomar coragem e fazer toda a edição de forma eletrônica.
Anos depois, visitando a redação de um grande jornal é que descobri que a nossa maneira de arquivar as notícias, tratar as fotos, fazer um método de trabalho em rede, o jeito de arquivar as matérias por página, a decisão pelos programas usados, enfim, tudo o que criamos intuitivamente era idêntico ao sistema adotado pelos grandes jornais. Éramos todos autodidatas, mas não tínhamos para quem perguntar, porque na região ninguém tinha computador nas redações. Líamos em revistas e livros, procurávamos cursos alternativos - o diagramador da época, era o meu irmão, o João Carlos. Ele chegou a fazer um curso em Campinas, aos sábados de manhã, para aprender a usar Corel e Page Maker. Era o mais próximo que tinha!
Nós sabíamos fazer matérias, sabíamos investigar os assuntos, sabíamos “desenhar” as páginas, porque aprendemos com você Clóvis ( e eram lindas porque você tinha um kit de diagramação com modelos de páginas já prontas, uma série interminável de grafismos e usávamos muitos espaços em branco para fazer contraste com capitulares imensas, principalmente no segundo caderno, que tinha jeito de revista embalado pela revolução que foi o Caderno 2 do Estadão). O jornal era mesmo de vanguarda e reunia uma gama variada de artistas, intelectuais e de gente comprometida com qualidade e beleza. Era uma outra época, onde o jornal era uma escola que se reinventava a cada edição e que não tinha medo de ousar, nem de ser ridículo, nem de criar polêmica.

Entrevista O MUNICIPIO - Parte I

1.Em que medida trabalhar no jornal foi uma 'escola' para você?
Acho que foi o tempo todo uma escola. A primeira lição de jornalismo, eu recebi na porta do jornal, pelo dr. Joaquim e jamais vou esquecer. Disse ele: “minha filha, você tem que responder cinco perguntas, onde, quando, porque, quem e como. É assim que começa uma matéria”. Eu tinha 24 anos e trazia na bagagem o MTB de Química, um casamento desfeito e dois filhos, o mais velho com 3 anos. Até então eu me atrevia a escrever artigos sobre ecologia - alguns publicados na Gazeta de São João- tinha tido um Hotelzinho para crianças e uma militância político-ecológica que havia culminado na montagem do PV em São João, na Prata e em Pinhal. Apesar disso, eu nem conhecia o O MUNICIPIO!
Embora o Jornal seja centenário, em 1990 ele praticamente não existia. Quando o dr. Joaquim o comprou o jornal , ele vinha de vários donos, que com muita dificuldade o tinham mantido para não acabar, numa crise que se iniciou na década de 70. Quando cheguei, ainda que já circulasse uma vez por semana e começasse uma nova fase, não tinha apelo popular nenhum.
O jornal começou a cair na “boca do povo” com uma série de matérias do “seu” Valter Luhmann, filho do fundador do Jornal.
Em 1991, “seu Valter” que ficara afastado da redação durante décadas, começou a assinar uma coluna intitulada “A Fala do Trono”, que eram sempre dirigidas ao prefeito da época. Era uma sátira ferina que começava sempre assim: “À Sua Alteza Imperial,Primeiro e Unico, Dom Gastão – o Gastador”. O apelido era por causa de um malfadado aumento de IPTU, justificado para dar conta do aumento de despesa. Seu Valter, com a coluna, recuperou a vocação de independência, que seu pai havia lançado - quase que como uma maldição - no editoral de 1906 e que o jornal havia perdido ao longo de anos de uso político entre 50 e 70 e de experiências alternativas de comunicação, na década de 80.
Por volta de 1992, o jornal já era mais “cult” que a concorrência, que tinha o seu forte nas notícias policiais e no número de páginas. Enquanto o O MUNICIPIO fazia edições semanais com no máximo 16 páginas, o jornal concorrente chegava a fazer edições com mais de 30, 40 páginas porque tinha gráfica própria e detinha a conta da Prefeitura para publicar os Atos Oficiais. Não havia como concorrer com isso.
Nós tínhamos que bancar a nossa posição e a única maneira de ultrapassar a concorrência era imprimir o jornal nos mesmos dias que o concorrente, ou seja, às quartas e sábados. Até então, o jornal saía somente às sextas feiras.
Mas isso só foi acontecer em junho de 1998. Chamamos dois consultores: um para a área financeira e outro para a diagramação e confecção do jornal. Eu ficava dividida entre os dois caminhos. Na redação, trabalhava com o Marini – que acho que continua consultor até hoje - e no financeiro com o Ferraz. O Marini era o intelectual, o jornalista premiado, com quem aprendi muito sobre como ser repórter, como editar um jornal, quais os critérios de escolha, a importância da pauta, o que olhar na diagramação...
Já o Ferraz era uma lição de vida. Ele tinha uma sagacidade, que fazia com que descobrisse tudo com um único olhar: Ele vinha uma vez por mês e sabia quem estava apaixonado, quem tinha brigado, quem queria ir embora...Era também uma máquina de somar e dividir e veio para profissionalizar a gestão que era familiar. Juntos eles deram um grande incremento para o jornal.
A edição de quarta foi o desafio maior, porque houve uma “rebelião” da redação, com a saída de dois dos principais repórteres e do diagramador, dois dias antes do lançamento da edição adicional. Foi uma loucura fazer jornal naquela semana. Tínhamos que contratar gente e não tinha faculdade de jornalismo na região. Só conseguimos um mês depois, contratando jornalistas de fora, com anúncio no Estadão e no Correio Popular de Campinas. Mas o jornal saiu na quarta-feira, como previsto, graças à garra de quem ficou. Foi quando aprendi na raça a diagramar. Isso foi logo depois do aniversário da cidade, se não me engano. No mês seguinte era a Copa do Mundo e aproveitando a nossa fragilidade editorial, começamos a fazer a “segunda edição” em carater especial, acompanhando os jogos da seleção brasileira. E contávamos com um colaborador especial: o De Múcio, em sua primeira Copa pela Globo.
Os jogos eram sempre fim da tarde, começo da noite. A internet tinha chegado ao jornal há um ano, mais ou menos. Instalamos um programa para baixar as fotos que iam “caindo” no computador, em tempo quase que real. Para nós era impressionante. Comprávamos fotos da Agência Estado e da Agência Folha. Em uma das capas que fizemos, a foto principal era igual à da capa do Estadão no mesmo dia. Glória total!. Trabalhávamos até de madrugada para fazer isso, mas nos deu agilidade para fazer mais de uma edição, pudemos treinar a distribuição, ver se vendia na banca. Tudo acerto e erro.
Os leitores quase não acreditavam. Publicar as fotos tão rápido ( e fazíamos fotos de meia página) era coisa de jornal “da capital” e trouxe o orgulho da cidade pelo jornal. Neste momento já tínhamos uma boa parceria com a população, mas eu acho que foi aí, que o Município passou a ser reconhecido como algo da cidade, algo do que se orgulhar...
O MUNICIPIO foi pioneiro e inovador e eu tive o prazer de ajudar a fazer cada parte. Foi o primeiro jornal do Brasil a ter o conteúdo na íntegra na Internet, também no final de 1998! A Folha de S. Paulo havia acabado de lançar o jornal on line, mas não tinha todas as matérias e nós aqui, no interior, com a edição na íntegra na rede. Até as propagandas!!!!! Claro que o arquivo da Folha era 100 vez maior que o nosso, mas O MUNICIPIO estava com todas as suas novas edições na rede ( o que nem hoje acontece). Ficamos com a edição na íntegra até 2001. Depois, infelizmente, o material se perdeu com o fechamento da Rantac. 1998, foi o ano de começar grandes matérias. Inclusive denunciar fraude na concessão das rodovias paulistas, o que rendeu até CPI na Assembléia Legislativa! A ISTOÉ publicou a matéria como exclusiva, mas era um “furo” do O MUNICIPIO!
Para a segunda edição “pegar” e aumentar a venda em banca ( já tínhamos mais assinantes, mas a concorrência ainda vendia o dobro) e fazer com que o assinante aceitasse dobrar o preço da assinatura sem reclamar, ou cancelar, começamos a fazer promoções. Primeiro foi uma série de livros que eram ofertados como brindes pagando um pouco mais – como o que acontece até hoje com os grandes jornais e revistas. Os assinantes ganhavam a coleção na renovação, pagando a metade do valor da banca. A primeira seleção foi com clássicos da literatura que eram adotados nas escolas e portanto, meio que obrigatório. Depois publicamos uma outra coleção ( com menor sucesso) de livros de romance e depois, filmes em VHS.
As perspectivas eram tão animadoras que o dr. Joaquim encontrou uma empresa que entregava revistas Abril na região e começou a colocar jornais em pelo menos uma banca em todas as cidades em que a empresa entregava as revistas ( Acho que eram 16). A distribuição era gratuita nestes locais e havia jornal até no Sul de Minas. A que mais saía era a banca de Poços de Caldas. A idéia era depois vender anúncios e fazer o jornal se tornar regional. Em Aguaí, o O Município chegou a comprar um jornal local e distribuíamos os dois juntos. Chegamos a imprimir por edição, nesta época, mais de 12 mil exemplares. Também neste ano, comecei a fazer um programa de Rádio que chamava “ O Município no AR”. Era na rádio Piratininga, no sábado de manhã. E era o máximo. O programa anunciava as manchetes, comentava os fatos que estavam no jornal e levava pessoas que davam entrevista no jornal para serem entrevistados no rádio. Era meia hora de programa, ao vivo, com o microfone aberto para o ouvinte interagir e ele não parava de tocar. A rádio naquele tempo tinha uma audiência absurda. Era muito gostoso de fazer.