Quando senti a agulhada na espinha, já era tarde para voltar atrás. Não que tivesse opção. Após 15 dias de consultas inocentes, remédios paliativos e diagnósticos contraditórios capitaneados por uma sempre necessária busca de causas, devidamente alicerçada pela psicologia e homeopatia, a cirurgia de emergência para a retirada de um apêndice retrocecal, era inevitável.
Não que estivesse claro para todos que estavam na sala de cirurgia de que se tratava mesmo de apendicite. O diagnóstico foi feito por exclusão e palpite: não era nada ginecológico, também não se tratava de pedras nos rins, nem pedras na vesícula. Uma virose também estava descartada, um tumor no intestino teria outros aliados. Por sua vez, o exame de sangue não apontava uma infecção capaz de fazer levar a sério a hipótese de um apêndice supurado. O ultrassom, coitado, apenas detectou um certa paralisia ao respirar de um lado do intestino, que poderia ser diversas coisas, mais sérias inclusive, mas não uma apendicite convencional. O raio X, em diversas posições estava limpo, como de um recém nascido.
A única pista estava na dor, do lado direito como convém aos apêndices, mas ainda assim, em posição errônea e com jeito de cólicas intestinais que iam e vinham. De constante mesmo, apenas uma náusea, que não me deixava engolir. Por sorte (?) outra pessoa semanas antes passara pelo mesmo calvário até o diagnóstico do apendice retrocecal, que fica encoberto pelo intestino e portanto, invisível para exames. Foi este diagnóstico que abriu caminho para a cirurgia.
Com isso, o apêndice roto e necrosado jazia envolto em brumas de inconsciência e a cirurgia era muito mais exploratória do que algo definido no preto e no branco como bem requer a santa alopatia.
Depois da agulhada, meus braços foram atados em talas ao lado da mesa. Cada membro acoplado a um aparelho diferente. Foi aí que me quedei imóvel. As pernas não mexiam mais, anestesiadas que estavam; os braços também não e a sensação de impotência começou a crescer. Como me coloquei nesta situação? Não parava de me perguntar.
Tentei fugir para algum lugar dentro de minha mente, onde eu ainda era eu e não um pedaço de carne que seria retalhado por dois desconhecidos, armados de bisturis, numa sala estranha, com enfermeiros preocupados com horários e um anestesista que fedia a cigarro, como só as narinas de um ex-fumante consegue detectar.
Mas o lugar abençoado não vinha. Nem mesmo aquele aposento tranquilo e florido, onde me refugio nas meditações apareceu para me salvar. Tentei rezar, mas as palavras não se formavam, estavam congeladas em um limbo e por mais que eu invocasse a presença de São Miguel, Nossa Senhora, Deus, minha mãe, minha vó, todas as mulheres já mortas da minha família, as frases não se juntavam e o que eu tinha era apenas o presente: duro, impalpável, sem chances de mudança. Era o agora e eu não gostava nada, nada do que estava vendo e sentindo.
Senti nitidamente o corte com o bisturi. Não havia dor, mas a sensação da carne cortada e depois afastada foi nítida. Reclamei. Disseram que era assim mesmo. Senti que estava aberta e que mãos exploravam o interior do meu ventre, tateavam órgãos e eu alí, parada, inerte, como uma coisa, um objeto a ser dissecado.
O bip dos aparelhos marcava os batimentos e a pressão sanguínea que normalmente já é baixa, mas que naquela situação estava em 9 por 6. Minha mente tentava lembrar qual é o limite, até quando a pressão pode baixar e qual é o batimento ideal, mas nada me parecia adequado. As palavras, velhas companheiras, haviam me abandonado e eu estava parada, presa onde tudo eram somente sensações.
Os bips indicavam que tudo continua a baixar e decidi que o melhor a fazer era controlar os números, já que somente eu parecia interessada neles. Os médicos estavam focados na exploração dos meus interiores, dizendo coisas absolutamente assustadoras.
__Olha como está isso?Disse um.
__ É mesmo apendicite, mas olhe onde está!? Não consigo chegar por aqui... Argumenta o outro.
__Corta mais, vai, afasta mais, tem que chegar. Meu Deus olha o estrago...
E eu ouvindo isso, como se tratasse de uma outra vida...De uma outra pessoa...
E o médico começa a tirar o apêndice. Mal ele toca e o estômago dá sinal de vida. Pânico.
___Gente vou vomitar, mas como façosem levantar a cabeça? Pergunto.
___ Vira a cabeça de lado, responde o médico. Cadê o anestesista? Berra o outro.
O anestesista vem, o enfermeiro segura uma toalha e me olha bondosamente, apertando minha mão. Olho o tal aparelhinho e a pressão está 6 por 4. Sinto uma pressão no peito que não vai embora. Parece que vou afogar e os batimentos caem para 80. Correm e colocam outros medicamentos, na minha veia. A pressão sobe, os batimentos normalizam...
_ Quantas gazes você abriu? Pergunta o médico ao instrumentista.
Vejo que eles começam a contar e comparar os envólocros com as gazes ...
_ Tem uma, duas.... oito, dez....
_ Falta uma gaze, onde está.....
_ Caiu no chão. Tá certo....
Eu fico pensando que só falta ter ficado uma dentro. O médico reconta. Acho que ele recebe a minha angústia e se contenta de que está mesmo certo.
Chega o pânico: quero sair dali. Quero me retirar desta situação. Quero ir embora. Qualquer lugar serve, mas tem que ser agora.
__Já tirou, não dá para fechar? Pergunto.
__ Calma, já estamos fechando...
__Não posso pelo menos mexer os braços?
Calma já vai acabar...
E o nariz começa a coçar. Não sei porquê, nem sabia que nariz coçava, mas o meu resolveu coçar naquela hora, como a garantir a minha insignificância. Fiquei pensando: quem passou por algum tipo de tortura, devia ser semelhante àquilo. Peço ao bondoso enfermeiro que me ajude. Ele entende a minha agonia e coça o meu nariz. Também não devo ser a primeira a ter esta coceira. Começo a tremer. Tremo incontrolavelmente, os braços se debatem, tenho medo. Parece que arrancaram algo que me era caro. Não sei porque isto acontece. Tenho medo. O enfermeiro de olhos bondosos segura a minha mão para eu parar de tremer, enquanto os médicos discutem sobre o tamanho dos pontos. Um é mais caprichoso, gosta de costura mais fina e pontos próximos. Outro faz pontos ao longe, não vê sentido em pontos perfeitos, onde ninguém vai ver. Na verdade seu celular já tocou duas vezes e ele não vê a hora de acabar com aquilo. Missão cumprida, a vida segue...
Aí me dou conta que estava acontecendo duas cirurgias diferentes naquela sala: uma era ligada à minha dor. Outra era uma coreografia, que fez com que anestesistas e enfermeiros espiassem por cima de ombros, o trabalho dos cirurgiões. Vi admiração nos olhos deles algumas vezes, como a aprovar as mãos que talhavam a carne; vi preocupação em outras, que se evidenciava num respirar mais curto e olhares mais duros. Findo o desafio, o balé era agora o de todo os dias.
Não podíamos mesmo ser parceiros. Estávamos em estradas diferentes. O paciente era eu e pecador absoluto em meu pecado, todo poderoso construtor dos meus desvarios, onipotente ser do controle e da raiva, confesso-me a mim. O que supurou e o que fez gangrena agora é passado. Resta uma nova vida. Um novo começo a brindar a alegria da vida, extraída dos estertores da morte.
Que venha!
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