sábado, 19 de fevereiro de 2011

Desenrolando fios

O dia é chuvoso, quente. Dias de fim de verão que já carregam no ar um cheiro de colheita e de terra fértil. Sento-me na mesa da casa em que cresci, para desembaraçar fios. Um emaranhado de linhas de bordar, de lãs que aqueceram diversos invernos e que jazem numa cesta, esquecidas, emaranhadas, sempre deixadas para depois, na mudança de diversas casas. A cesta é um desafio especial. A carreguei para muitos lugares, para muitas cidades, mas sempre intocada. Foram nela se amontoando outros novelos, muitas meadas de linha, carretéis intocados...
Muitas vezes a quiz jogar fora mas, nunca tive coragem. A cesta guarda um pouco do que eu fui, do que eu sou, do que eu deveria ter sido e talvez, juntando as partes poderei tecer um novo futuro.
Herdei a necessidade de fazer uma cesta com linhas, paninhos, agulhas e lãs da minha mãe que passou a vida com uma nas mãos. A minha primeira experiência com as linhas foi ainda menina.
Minha mãe tentou me ensinar a bordar mas nunca conseguiu. Quem deu conta do recado foram as freiras do Colégio Santo André. Elas davam aulas de bordado, para meninas, com outras voluntárias. As aulas eram às quintas-feiras, na varanda ao lado do jardim do convento. Era um lugar lindo, com um barulho de água que vinha da gruta e flores coloridas que atraíam beijas flores e borboletas de diversas cores. Lá eu tinha paciência de aprender só pelo prazer de estar alí.
O que me atraia era o silêncio, as vozes sempre baixas. Ficávamos lá, algumas meninas e muitas donas de casa, lutando com paninhos-de-amostra-de-ponto e ouvindo conversas de mulher, que eram sussurradas, para não quebrar o encanto do local.
Minha mãe era especialista em ponto cruz. Mas, versátil, também enveredou pelas artes plásticas, pela pintura em porcelana e de peças em gesso, pelas flores artificiais, para depois se concentrar, de novo, no ponto cruz.
Minha avó fazia crochê e macramê. Lembro de suas mãos fininhas, os dedos frágeis, se movendo em alta velocidade para fazer toalhinhas, ou “amarrando” pano de prato. Mas na medida em que os anos chegaram e que o azul dos olhos foi tomado por uma bruma branca, o crochê, as linhas e os alvos panos de prato alvejados em caldeirão no fogao de lenha e branqueados com um quadradinho azul de alvejante, foram deixado de lado. Vó Isabel era seu nome e a sua lembrança e invocação sempre presente é que me deram
Enquanto estou na mesa da cozinha, com a cesta nas mõs, as linhas embaralhadas trazem histórias que formam novos novelos na minha mente.
Depois da infância, só me aproximei daquela cesta em ocasiões muito especiais e em todas as notícias de gravidêz. Era uma atração especial: mal lia o resultado do exame e já corria para a cesta. Parecia que a ação que se processava por dentro tinha que encontrar uma parceria do lado de fora. As linhas que bordavam, os pontos do tricô, as agulhas, fitas, passa-marias iam construindo de maneira palpável, o pequeno ser que ser formava nas entranhas. E foram quatro vezes. Em três, o grande prazer de gerar ganhou pernas, braços e risos. Muitos risos. Estar com os meninos é sempre festa. Principalmente quando todos se juntam. Até mesmo o que foi morar no céu, antes de nascer, parece estar junto, quando nos sentamos na sala, cada um de um lado, outro no colo (agora mais difícil a tarefa), lembrando histórias, falando da vida, assistindo filmes ou apenas rindo uns dos outros, ou todos de um.
Tiro uma meada verde bandeira que foi usada para bordar um conjuntinho de pagão do meu primogênito, mas que os três usaram porque era muito linda. Roupinha de pagão, era como chamávamos uma roupinha “de baixo”, colocada antes do macacão. A mesma linha foi usada numa “vira manta”, que era quase um lenço que colocávamos em volta de um cobertorzinho, onde o bebê ficava enroladinho, como um canudo gigante, somente com a cabeça para fora, apoiada numa dobra maior do cobertor.
Outro dia vi na TV que um médico descobriu uma fórmula mágica de fazer os bebês pararem de chorar: enrolar o dito cujo, para ele sentir a presença de limites, numa forma de rememorar o espaço pequeno que tinha no útero. Nada mais, que o velho e bom “cueiro”, que nem era mais moda na década de 80, mas que para o meu primeiro filho, primeiro neto e primeiro sobrinho só tinha aquela forma de vir e conquistar o seu espaço no mundo: um jeito antigo, típico de vó e do interior.
O cueiro – bemdito o seja – perdeu a função pública na primeira visita ao pediatra, com ele enrolado no dizer de minha mãe, como um “fagotão”*: o pediatra achou absurdo. Disse que inibia os movimentos do bebê e que era uma coisa ultrapassada. Vinte anos depois, como eu já sabia e usei em todos os três, o cueiro virou fórmula mágica para fazer bebê parar de chorar, como acontece com quase tudo que era bom no passado, virou proibido e depois foi redescoberto.
Outra meada e outra lembrança. Desta vez o enxoval do meu segundo filho. Para ele fiz conjuntinhos de lã e lembranças do nascimento que eram mini sapatinhos, onde se colocava o nome do bebê, com um cartãozinho e a data do nascimento. Fiz tantos sapatinhos, que sobraram para lembranças do nascimento do meu sobrinho, que foi o próximo bebê da família e até pouco tempo atrás, de vez em quando se via em alguma gaveta esquecida, uma destas miniaturas...
Na gravidez que não chegou a seu termo, fiz um monte de coisas cor-de-rosa. Infeliz presságio. Era um menino como os demais e o enxoval, de qualquer forma, nunca seria usado mesmo.
Para o último o que me motivou na direção da cesta, foi uma “febre” de bordados em lençóis e toalhinhas. Foram tantos lençóis com ovelhas e paninhos de boca, que até hoje, 14 anos depois, as toalhinhas ainda estão nos armários, com nomes e figuras bordadas em ponto cruz.
Só retomei a cesta de costura muito depois, já encerradas as possibilidades de gravidez, em busca de paz. Fugia para a cesta para bordar tapetes e fazer cachecol, que não requerem talento nenhum, nem precisam de esforço de concentração. Funcionavam como terapia para esvaziar a mente muito cheia. Mecanismo parecido com o da gravidez, porém, algo mais leve porque não havia compromisso em terminar. Fazer por fazer. Sem importar com o uso, com o prazo de término. A cesta está cheia destas experiências.
Continuo a remexer na cesta e reconheço o esboço para bordar uma toalha em ponto cruz minimamente contados, que eu guardei por conhecer o original.
Minha mãe bordou a toalha assim para seu enxoval quando tinha 16 anos. Era um encantamento. A toalha tinha duas chinesas em cada canto. Elas, paramentadas com quimonos, chapéus e sombrinhas mantinham as cabeças baixas, onde só se via, os riscos dos olhos puxados e o sorriso. Uma cochichava no ouvido da outra, e aos sussurros, pareciam contar histórias divertidas, como se comentassem o que viam. Sempre achei que elas riam da gente. A toalha só era usada em grandes ocasiões. Fazia parte de um especial aparelho de chá, com bolinhas vermelhas sobre a cerâmica branca, modernidades da década de 60.
Geralmente, a toalha era colocada quando visitas apareciam para o café da tarde. Havia sempre um bolo, ou bolachinhas, que acompanhavam o dia da visita. A qualidade dependia da importância do visitante.
O desenho me faz lembrar de um outro tempo, mas aí já é uma outra história...

(Continua)
· Fagotão, seria o equivalente a um fagotto grande. Fagotto é um instrumento de sopro muito popular na Itália, utilizado em bailes. A semelhança está na forma com que se carrega o instrumento e o bebê enrolado.

1 comentários:

Unknown disse...

Maravilhoso Comadre! Delicioso de ler e com sabor e cheiro de final de tarde recheado de lembranças.
Pra quem como eu que sempre adorou ver a chibata que era a tua pena no jornal,foi uma grata surpresa ler esse texto que acarinha de forma delicada tuas historias intimas e o leitor.
Beijo

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