segunda-feira, 4 de abril de 2011

Minha mãe

Neste mês fará 8 anos que a minha mãe morreu. Não houve a benção de uma parada cardíaca. O que aconteceu foi um acabar aos poucos, um definhar a outros vistos que nos envolveu a todos – filhos, genros, noras, netos e meu pai, numa batalha insana.

Enquanto de um lado nos armávamos com toda parafernália de tratamentos diversos para lutar pela vida, do outro lado espreitava a morte, onipresente, explodindo em resultados de exames impensáveis que relatavam que a doença se espalhava mais e mais, como se ao invés de remédios e cirurgias usássemos placebos.

A busca pela vida era feita do lado de fora. Não podíamos ver que por dentro havia, apenas, a morte, derradeira, contínua e persistente, a traçar as suas teias.

E nós ficávamos ali, com as nossas próprias vidas suspensas entre uma coisa e outra, entre uma internação e um novo exame. Curioso dizer que este limbo nos puxava para vida, quanto mais a morte escancarava as suas intenções e aí, dá-lhe psicólogas para aprender a lidar com as perdas de movimento, tratamentos inovadores para conter a dor, médicos diversos, anestesistas, fisioterapeutas...

Juntavam-se à esse exército terapias alternativas, as canções e imposições de mãos que clamavam ao Espírito Santo através da Renovação Carismática e até mesmo uma vidente, que jurava que todo o problema estava na cabeça...

Um ano disso. Um ano de quimioterapia, radioterapia, cintilografias diversas, exames com contraste, exames sem contraste, tomografias computadorizadas, esperas intermináveis, UTIs, remédios de última geração e relógios que marcavam minutos que se arrastavam instalados em salas de espera frias e brancas e , em todas elas, os pacientes com sintomas semelhantes e seus acompanhantes.

Nestes pátios de diversos hospitais ficavam de um lado os pacientes e do outro os acompanhantes e motoristas. Uma gente que fumava muito, os acompanhantes. O cigarro era uma senha para saber que não eram eles os doentes. Seriam talvez no futuro, mas naquele momento, onde a dor e a tristeza tornavam o ar pesado, passível de ser cortado com faca, o cigarro era uma desculpa para sair ao ar livre e respirar, ainda que fosse nicotina e alcatrão. Nas salas de espera histórias se desenrolavam, entre os acompanhantes. Uma delas me marcou muito. A de Maria, uma mulher que reencontrou o seu namorado de infância depois de dois casamentos, três filhos e quarenta anos. Ela viúva. Ele também. O encontro se deu num baile da terceira idade.

__ “Ele tinha os mesmos olhos, como eu lembrava. O mesmo jeito de menino, com a camisa por fora da calça”, me conta a senhora.

Maria conta que na mocidade foram impedidos por seu pai de namorar. Ela tinha então 13 anos. Ele 20. O pai não quis, o menino assustado fugiu da fazenda em que viviam para não ver novamente o seu amor. Mudou de cidade, casou, teve filhos, ficou viúvo e então voltou para a cidade de origem.

A paixão renasceu instantânea, no encontro tardio. Os beijos muitas vezes guardados explodiram no amor de outono. Foram morar juntos, na casa dele, contrariando o desejo dos filhos. Novamente briga em família. Mas agora ela podia mais e resolveu bancar a felicidade. Foram meses de puro idílio, mas depois, o amor “esfriou”.

__ “Ele não me procurava mais, sabe. Fiquei desconfiada de que havia outra mulher. Estava sempre cansado... Cheguei até a seguí-lo em seu trabalho”, contou-me Maria num fio de voz.

__ E havia? Pergunto, muito mais para preencher o vazio deixado pela voz embargada, mas já sabendo a resposta: Era a doença que se instalava. Dois meses depois veio o diagnóstico: Câncer de próstata. Fase terminal. Três meses, na melhor das hipóteses 6 meses.

Os olhos da senhora se enchem de lágrimas. Ela me olha em busca de respostas que eu não tenho.

__ “Por que Deus me fez encontrá-lo, para perdê-lo depois deste jeito?”

Não tenho o que responder. A conversa se dá do lado de fora da clínica de radioterapia e um enfermeiro vem chamar Maria. Seu José, o amante companheiro, está passando mal e pede a sua presença.Ela corre para salvar seu amor, mesmo sabendo que a vida está por um fio.

Era o final de março e a Serra que leva a Poços de Caldas estava pintada com as flores roxas dos Ipês. Lembro de ficar olhando aquelas manchas roxas que permeiam o verde da montanha, como se fossem uma pintura sulrealista. O ar é sempre frio naquele ponto da serra, onde sopra um vento gelado. O vento varre as nuvens e o céu se mostra de um azul brilhante. As cores se misturam através das lágrimas. Vira um borrão, uma tela manchada de cores, com inúmeros matizes de verdes e o roxo a pontuar a paisagem. É tão bonito, tão belo, que parece injusto que num lugar assim haja tanto sofrimento. Tantas histórias mutiladas, inacabadas e a única certeza é a do vento varrendo também as esperanças. A maior parte dos que estão alí, só querem que aquilo acabe de vez, de uma maneira ou de outra.

O roxo das flores têm uma razão de ser: era quaresma, época em que as paineiras e o Ipê Roxo florescem conforme havia me ensina a minha mãe, quando começamos a subir a Serra naquele dia. Mais um dia de rádioterapia.

Ela, ao contrário dos demais pacientes que formaram uma espécie de roda, com suas cadeiras, para falar das suas dores, do último paciente que morreu e, invariavelmente, de algum remédio “milagroso” que curou alguém, está longe do grupo, sentada de frente para a montanha e de costas para o grupo que conversa. Seus olhos encontram os meus. Minha mãe não se relacionava com os demais doentes. Nunca. Ela se encerrava em um canto, como se fora uma ilha. Odiava aquilo. Odiava estar doente. Odiava ter que passar por isso. Naquele dia – um dos últimos da nossa ida diária à clinica – leio em seus olhos o cansaço. A luta vem se estendendo e a última cirurgia - que a deixou na cadeira de roda-, foi o último enfrentamento e estava além daquilo que considerava tolerável. Ela até vinha aceitando a doença, mas estar imobilizada, tendo que ser carregada de um lado para outro, sentindo-se um fardo, foi além do seu limite. Ultrapassou aquilo que julgava aceitável.

Tento ver através dos seus olhos, mas só consigo perceber que ela não enxerga as cores dos Ipês. Tudo o que vê é o enfado. A espera. Os pacientes que parecem cada dia pior e fica difícil não usar o efeito espelho, para se ver como eles. Ela também se vê pior nos olhos dos outros. Notei que a sua pele tinha adquirido uma cor estranha. Ela sempre teve a pele linda. Alva, lisa, onde os olhos verdes pareciam sinalizar, como faróis, a passagem livre para quem se aproximava. Um porto seguro, para onde acorriam inúmeras pessoas. Naquele momento vi que os olhos perderam o brilho e a vivacidade que as cores fugiram da face. E que todo o seu rosto tornou-se vazio. Olhavam o nada...

Foi neste momento que comecei a me despedir. A parar de lutar. A parar de buscar a cura e a pedir a benção da morte. Entendi finalmente os grupos de apoio e os livros de auto-ajuda, que chegavam de todos os lugares e e mais do que ensinar a viver e curar-se, buscavam, com sofreguidão o morrer em paz. Nada disso foi possível, quando a vida clamava mais alto e exigia a sua cota de continuidade. No entanto, naquela manhã, entendi que era hora de jogar a toalha e que a morte havia ganho a parada.

Dois dias depois fui buscar o resultado do último exame em dois laboratórios distintos. Em ambos, o resultado era de que o câncer devia estar em todos os lugares, tamanha era a contagem de células cancerígenas. A tarde, ela descobriu nódulos nas costas. No dia seguinte estavam em toda a coluna, nas juntas...Era uma sexta-feira, lembro bem.

Aí decidiu que não iria ao hospital. Desde que o tratamento havia começado, foi a primeira vez que me tirou do comando e voltou de novo a ser minha mãe e não mais minha filha. Resoluta, instalou-se em seu quarto e o médico teve que ir até em casa e fazer com ela um acordo fúnebre: ela aceitava se internar na segunda, mas só iria ao hospital, com a promessa de que ele não a levasse à UTI, fosse qual fosse o quadro. Ele, boa alma que é, aceitou o trato e o honrou.

Naquele fim de semana, sem que ninguém chamasse, houve uma procissão de visitas. Eram as despedidas derradeiras que se davam em silêncio, com pouca conversa, nos momentos em que minha mãe estava acordada, semidopada que estava, em função dos remédios para dor. Lembro das amigas da igreja à sua volta, de um violão que tocava as músicas da Mãe Rainha e do meu filho caçula, deitado com ela, a cabeça juntinho com a dela, dividindo o mesmo travesseiro. Ele era muito afinado aos 6 anos e tinha decorado as músicas. Depois veio me dizer que a vó ia virar borboleta.

Lembro que as lágrimas escorriam sem que eu pudesse controlar e ele, muito sério, me explicando como era virar borboleta e que era muito bom, porque a vó estava presa e iria se libertar, voando para onde quisesse. Ele não a reconhecia mesmo, naquela cama. Não era a sua vó tão amada. Tão propensa a lhe fazer todas as vontades. Era uma vó sempre com dor, que tomava muito remédio e mantinha a mãe longe de casa...

Depois, no hospital, nos 15 dias finais de agonia, já dopada com morfina, minha mãe ia e vinha de um mundo espiritual, sem poder escolher em qual ficar.

Quando ela se retirava para outras paragens, eu também saía para fora do seu quarto. Nas proximidades do Hospital da Unimed, localizado nas cercanias da cidade, há uma infinidade de passarinhos e uma profusão de maritacas que fazem algazarra ao nascer e ao por do sol. A estes sons, que para mim eram sinais mágicos, tons e sobretons de vida, somavam as borboletas.

Sempre que saía para a área externa do hospital via uma borboleta. Sentava no banco, ficava olhando e aos poucos, a sua presença ia me aquietando, me fazendo aceitar a ausência de minha mãe e a imaginar uma vida sem ela.

Foi há oito anos, mas parece que foi ontem. Não dói mais do mesmo jeito. Dói de um jeito diferente, num jeito saudoso e nostálgico. Dói pelas coisas não ditas. Se eu soubesse o que sei hoje, teria me preocupado menos com as questões práticas daquele último ano e me deixado deitar em seu colo e ouvir as suas histórias, ou apenas me deixar ficar em silêncio. Hoje o que dói é a sua “não presença”, ainda que nos encontremos, às vezes, quando eu também viro borboleta.

Um beijo mãe.

1 comentários:

Thaís Cordon disse...

Bell,

Com certeza sua mãe é uma das mais lindas borboletas que está no ceu. Que Deus abençoe você e toda família!
Emocionante, chorei ao lembrar da minha vó materna, que faleceu da mesma doença...
O amor que sinto pela minha mãe aumenta a cada dia, e lendo o texto, agradeço à Deus - mais ainda - por me abençoar e ser filha de quem sou, da melhor MAMÃE DO MUNDO!

*Dar amor aqueles que amamos...nunca é demais!

Beijos,
Thaís Cordon

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