sexta-feira, 8 de abril de 2011

Um Portal na Mantiqueira *

No casarão vazio, os passos que ecoam no assoalho refletem lembranças de um tempo adormecido.

Entro nas salas, olho para as estantes e não há vazio a impregnar o ambiente. Paira no ar o peso das muitas histórias vividas que de tão vívidas , quase nos faz sentir o sabor e os aromas.

Fico imaginando como seria a vida naquela casa, quando de sua inauguração há mais de 100 anos.

Não é difícil evocar, no cair da tarde, a presença dos ancestrais. Quase é possível ver a Sinhá, colocando compotas no armário de doces. Da até para visualizar o senhor da casa chegando num azalão e com suas botas até os joelhos entrar, procurando a cadeira mais confortável para encher o cachimbo com um bom fumo de corda.

Naquele momento deveria existir uma certa desordem na cozinha, com o jantar prestes a ser colocado na mesa grande. Certamente não haveria carne de vaca. Boi era produto para venda. Mais acertado seria dizer que haveria um frango ensopado, se fosse dia comum, ou um leitão, caso a ocasião fosse de grandes comemorações. Poderia ter ainda alguma caça a valorizar o cardápio restrito.

Certo é que haveriam pães preparados por mãos quituteiras, legumes e verduras colhidos na horta, uma infinidade de doces para a sobremesa e um feijão com toucinho, para não esquecer a tradição mineira, bem como um belo queijo.

As crianças deveriam se preparar para o jantar com esmero, livrando-se da poeira de um dia inteiro de brincadeiras e do trabalho que dá subir nas jabuticabeiras e de se fartar nas mangueiras.

Depois do jantar, talvez houvesse um pouco de música. Algumas coisas são imutáveis. A lua na fazenda continua a despontar por trás da montanha. Em noites de lua cheia, o clarão invade os janelões e naquela época tornavam mais fácil a tarefa dos lampiões. Moças casadoiras aproveitariam as horas de descanso, para produzir enxovais.

Nas mãos delicadas cada ponto no tecido de linho sedimentava um desejo. O enxoval era esculpido com muitos suspiros e algumas lágrimas, quando o noivo escolhido pelo pai não era, exatamente, um príncipe num cavalo branco.

Imagino também que as crianças se reuniam no terreiro e se amedontravam com histórias de assombração. Que naquela época, mula-sem-cabeça e mãe d'ouro eram mais reais que modernidades como carro que anda sem cavalo...

Durante o dia devia ter muita movimentação na fazenda. As mulheres da casa grande tinham toda uma programação para enfrentar. Deviam haver escravos, muitos, mas no Brasil rural do início do século XIX, não tinha lugar para madames, peruas ou equivalentes. Mas havia tempo livre, é claro. Tempo para olhar o vazio no horizonte e sonhar.

Nas fazendas eram produzidos tudo o que fosse necessário para a subsistência. Faltava apenas o sal e o glamour que viajava em lombos de burro, com os tropeiros, que traziam também as notícias dos grandes centros.

Ẽra um mundo feito de verde da mata, de revoada de pássaros, conversas ao pé do fogo de lenha, de ricos e pobres, brancos e mestiços, negros e italianos.

Sentada na sala, olhando à vista da janela, ouvindo os ecos do passado, não dá para pensar que a realidade daqueles dias era muito diferente.

Havia um tempo interno que era muito mais respeitado que hoje. Tempo de semear e colher. Tempo de falar e calar. Temo de se fazer ouvir e outro de apenas escutar.

Da janela um som estridente me tira deste devaneio. Eu saio da sala para acudir meu filho e minha sobrinha que estão em busca de um portal e querem a minha ajuda. Ela, sobretudo, tem certeza de que em algum lugar daquela enorme casa , deve existir um portal que nos levará, diretamente, para algum lugar no passado ou no futuro.

Eu explico que o portal deve mesmo existir e que , por alguns instantes, eu me vi em um outro tempo, observando a vida em uma outra época. Basta fechar os olhos e imaginar.

Eles me olham decepcionados,. Não querem um jogo de faz de conta. Querem achar o lugar que os levarão “de verdade” para um outro tempo. “Não é brincadeira, é sério” me dizem e saem correndo, um pouco indignados pelo meu descrédito....

Fico calada. Tinha esquecido que o tempo é outro para as crianças que podem reinventá-lo como queiram e sonhar com o passado, ofuturo, ou apenas deixá-lo escorrer pelos dedos, sem pressa.

Os dois ficam desaparecidos por um bom tempo e depois pegunto, na hora do lanche, se eles encontraram o portal. Eles me olham desconfiados e desconversam. Fico com a impressão que fui ludibriada...

*Mais um texto do baú. Escrevi isso em 2003, na fazenda da Roice, para a revista Contra Regra que o pessoal do Teatro de Tábuas mantinha. A “casa amarela” na Fazenda Recanto é uma das muitas que povoam meus sonhos. Os mais recorrentes são com estas casas antigas. Em algumas delas morei. Em outras apenas estive de passagem, ou em visita. Em meus sonhos há sempre outros cômodos que eu desconheço e que é preciso desbravar...Geralmente estão cheios de teias de aranha , com sólidos móveis de madeira que precisam ser dispostos em outros cômodos... Uma noite destas reformei uma casa inteira e acordei com as mãos doendo...rs

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