quarta-feira, 2 de março de 2011

Entrevista O MUNICIPIO - Parte IV - O Caso Priscila e a Lei de Imprensa

4- que fato importante (registrado em sua matéria) também ficou marcado em sua memória jornalística, enquanto funcionário do jornal?
Em 14 anos passa uma vida. Houve matérias que foram muito custosas emocionalmente. Mas nenhuma como cobrir o assassinato da menina Priscila, em 2000 e todas as implicações de depois. (Priscila foi assinada pelos pais, com 1 ano e 9 meses, depois de ser barbaramente torturada durante meses. A criança já havia sido afastada dos pais quando tinha dois meses e encaminhada para uma família de apoio pela Vara da Infância e da Juventude, em função de maus tratos. Reinserida na família de origem, quando tinha 1 ano e dois meses, a criança era obrigada a passar por uma pediatra, pela Assistente Social e Psicóloga uma vez ao mês. A médica às vezes pedia para vê-la a cada 15 dias, em função dos “acidentes” que sofria e que lhe feriam a cabeça, braços e pernas e que requeriam exames mais acurados, como constantes raio X. Tudo isso era relatado minuciosamente em relatórios, que constam do processo e que apontavam ainda que ela tinha uma “dermatite de fralda” que não sarava e que era tão feia, formando bolhas, que no Boletim de Ocorrência registrado pelo Pronto Socorro, para onde a menina foi levada depois de morta, o corpo clínico achou que eram marcas de queimadura de cigarro. Os mesmos relatórios dão conta que a menina ainda emagrecia todo mês e que nunca andou, embora não tivesse problemas motores e já ficasse de pé, quando foi para a casa dos pais. Apesar do aparato criado para protegê-la e registrado no processo, durante os sete meses que durou o suplício da menina, nenhuma das pessoas envolvidas se posicionaram para dizer que algo de muito sério acontecia ali. Pelo contrário, alguns relatórios justificavam as lesões encontradas pela médica como “intercorrências normais para a idade”).
Eu nunca quiz fazer matérias de polícia. Na época, essa era função da Ana Paula Fortes. Mas achei, até porque ela era muito menina, que cobrir aquilo exigia um pouco mais de preparo. Eu tenho todos os passos da matéria muito nítidas na memória. Lembro que primeiro falei com a família de apoio que queria adotar a menina; depois com a promotora e fui eu quem dei a notícia da morte, a ela. Ela me franqueou acesso ao do processo e quanto mais eu lia, mais me indignava, porque a história de abuso estava toda caracterizada nos documentos. Naquele momento a mãe já tinha confessado que tinha matado a menina e estava presa. Para mim o espanto era tal, que eu copiava os documentos e fazia comentários. Foi juntando gente que estava no fórum, para saber o que eu estava vendo. A promotora me chamou e perguntou o porquê daquilo tudo. Contei o que tinha visto e o que estava no processo. Ela me disse: Ótimo. Vamos usar o processo para condenar a mãe. Eu só pude responder: Mas a função do processo era salvar a filha. Não era a de condenar ninguém! E sai. Começava ali um problema que só acabaria em 2006, dois anos depois de eu já ter deixado o jornal. E o processo citado serviu mesmo de base para que a promotoria conseguisse a premeditação do crime e os 18 anos de condenação do casal, que até onde eu sei, ainda cumprem pena.
Saindo do fórum fui para a Fazenda São Paulo, falar com os vizinhos ( tinha lá uma vilazinha para os trabalhadores) Eles me contaram que todo mundo sabia que a Teresa ( este é o nome da mãe) batia na filha. Que eles sabiam que os dois não gostavam da menina – tinha uma fofoca de traição - e que o casal não mostrava a menina para ninguém. Apenas a filha mais velha é que eles viam. Foi na fazenda, naquele dia, que ouvi pela primeira vez a história de que uma irmã do Vitor ( pai da menina) tinha feito o mesmo e “não tinha acontecido nada”.
Fui para o jornal escrever. Foi o mais difícil. Quando acabou, tive uma crise de choro que foi incontrolável. Era um misto de tristeza, de raiva, de impotência, porque estava tudo alí. Num dia, foi fácil levantar o que ela viveu em 7 meses. É claro que sempre é mais fácil entender uma história quando você sabe o desfecho, do que quando está vivendo no calor dos acontecimentos, mas não podia entender, nem aceitar um sistema feito para proteger e que não cumpre o seu papel.
A minha indignação encontrou eco nos leitores. Foram cartas, artigos, telefonemas, a cidade ficou chocada Primeiro pela violência, básica, gratuita, covarde. Depois pela omissão das autoridades envolvidas numa morte que parecia anunciada... E nós fomos publicando tudo o que chegava. Para encurtar: os leitores foram intimidados por policiais por terem se manifestado e uma leitora que escreveu um artigo falando sobre Justiça Divina, foi processada, mas ela foi inocentada no final. Uma denúncia de crime contra a honra foi feita contra mim (estava em vigor, ainda , a Lei de Imprensa da Ditadura), mas depois de correr o Estado até achar um promotor que a propusesse, não foi acatada pela justiça. O jornal, com base na mesma lei, também foi processado na esfera civil, para que pagasse uma indenização por danos morais, à Assistente Social que acompanhava o caso. Mas, uma vez que não houve o crime, não poderia haver ressarcimento e em 2006, finalmente o processo chegou ao fim.
Quando soube que os leitores estavam sendo ameaçados, fiz um relatório de tudo o que tinha acontecido, o que ainda estava acontecendo, peguei um taxi aqui em São João e fui descer na praça da Sé. Nem sabia direito onde estava indo, mas tive sorte e achei o presidente do Tribunal e o Corregedor no Elevador que estavam saindo. Expliquei o caso e entreguei o documento na mão deles. Dois dias depois, desembargadores do Tribunal de Justiça estavam em São João para pegar cópia do processo. Um mês depois instalou-se uma correição no Fórum. Teve advogado que fez churrasco neste dia! Os desembargadores voltaram mais duas vezes e ouviram todos os leitores que foram “visitados” por policiais. O processo foi parar num setor de feitos originários e depois arquivado e muitas idas e vindas foi arquivado. Sobre a lei de imprensa da Ditadura e os processos do jornal vale um capítulo, porque aconteceu ainda há pouco e foi provocado por uma lei dos militares que fez efeito e vítimas, até 2008.

1 comentários:

Angela Helena Viel disse...

caraca, até me emocionei!!!

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